
Herança Digital: a importância do planejamento
HERANÇA DIGITAL: A IMPORTÂNCIA DO PLANEJAMENTO
Juliana Leite Ribeiro do Vale
Advogada
Mestre em Direito (UFRGS)
O Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (CETIC) divulgou pesquisa apontando que 70% da população brasileira está conectada a internet (https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2019/08/28/uso-da-internet-no-brasil-cresce-e-70percent-da-populacao-esta-conectada.ghtml). São aproximadamente 127 milhões de pessoas usando as mais variadas plataformas digitais (Facebook, Twitter, Instagram, Tiktok, Snapchat, Linkedin; Youtube, e-mails, fotos, senhas, contas bancárias, criptomoedas, iCloud, Dropbox, Onedrive, Whatsapp etc.).
A preocupação deste texto é o destino a ser dado a esse conteúdo virtual quando da morte da pessoa. Já há casos de pessoas famosas no Brasil que morreram com contas em redes sociais com importante expressão econômica e existencial (Gugu Liberato, Gabriel Diniz, Reginaldo Rossi, Hebe Camargo). Do exterior, ficou conhecido o julgamento do Tribunal Federal Alemão, o BGH, que permitiu aos pais de uma menina de 15 anos, que morreu em circunstâncias obscuras no metrô de Berlim, acesso irrestrito à conta do Facebook, após a empresa ter negado o acesso. Mas os casos de “pessoas comuns” já começam a chegar aos escritórios de advocacia. São questionamentos muito comuns: “preciso acessar a página do Facebook do meu irmão que faleceu”; “há mensagens a serem respondidas”; “posso seguir com as vendas on-line no canal do instagram?” Como proceder?
O ordenamento jurídico brasileiro não
tem regra expressa sobre o que, ao que parece, já se convencionou denominar de “herança
digital”. Legislações recentes que regulamentam as atividades em ambiente
digital não tratam da matéria (o Marco Civil da Internet, Lei n. 12.965/14 e a
Lei Geral de Proteção de Dados
brasileira, Lei n. 13.709/18). Tampouco os projetos de lei que tramitam no
Congresso Nacional trazem regras claras a respeito da transmissibilidade
sucessórias do acervo digital (PL 5.820/2019 e PL 6468/2019).
O tema toca os direitos de personalidade do falecido e de terceiros. Também deve haver reflexão sobre os direitos autorais, propriedade intelectual e marcas. “A propriedade é somente o sujeito em ação, é o sujeito à conquista do mundo” (GROSSI, Paolo. História de Propriedade e outros ensaios. Trad. Luiz Ernani Fritoli; Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 82). Então tudo é propriedade? (interessante abordagem sobre essa questão pode ser encontrada na reflexão de everilda brandão guilhermino no texto “Acesso e compartilhamento: a nova base econômica e jurídica dos contratos e da propriedade em https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/311569/acesso-e-compartilhamento-a-nova-base-economica-e-juridica-dos-contratos-e-da-propriedade). E com a morte, tudo é herança?
É preciso começar pensando no conceito
de herança. Herança é um todo unitário, indivisível, formado pelo
conjunto de bens, direitos e obrigações que o morto era titular (ativo e
passivo) – exceto os intransmissíveis – que, por força da morte,
é transmitido aos seus sucessores.
Grifa-se a exceção para dizer que o
direito sucessório não tem a função de abarcar todo e qualquer conteúdo
relativo a esfera patrimonial e existencial da pessoa. Excluem-se da sucessão,
por exemplo, o poder familiar, a tutela, a curatela, as obrigações
personalíssimas.
Nesse sentido, a pergunta que é preciso
fazer inicial é “qual conteúdo do acervo digital se inclui na herança”? Todo
ele?
No Brasil, duas correntes parecem estar
tomando corpo. A primeira delas considera que todo o acervo digital deve ser
transmitido aos herdeiros, usando, inclusive, os fundamentos usados pelo BGH
alemão no caso acima mencionado. A segunda corrente entende que parte do
acervo pode ser transmitido e parte não. Para tanto, essa corrente utiliza uma classificação para os bens digitais, que os divide em bens
digitais patrimoniais (os de conteúdo meramente econômico), personalíssimos (de
conteúdo existencial) ou híbridos (com valor existencial, mas que tem conteúdo
econômico) (ZAMPIER, Bruno. Bens digitais. Induiutaba, SP: Editora Foco, 2017). Para essa segunda corrente, apenas os
bens digitais patrimoniais podem ser transmitidos para os sucessores do
falecido, ou seja, somente eles integram a herança digital.
Sob essa perspectiva, vê-se que existe
uma dúvida importante acerca dos bens digitais de natureza híbrida, pois eles
têm um duplo caráter – patrimonial e existencial. Esses bens precisam ser
analisados com cautela, pois podem transferir para os herdeiros, em razão do
caráter patrimonial, mas é importante que os direitos de personalidade do
falecido e de terceiros sejam respeitados.
A questão é muito nova e não há regras
expressas sobre o assunto, tampouco critérios jurídicos bem consolidados. No
que se refere a decisões judiciais, tem-se notícias de apenas dois casos
julgados no Brasil (um no Mato Grosso do Sul e outro em Minas Gerais).
Temos, então, um campo importante de (in)definição
de critérios de transmissão. A ausência de regramento específico e doutrina ainda
incipiente, aumenta o risco de soluções casuístas, a partir de critérios subjetivos,
sendo certo que “se a verdade depender da atribuição do sujeito-intérprete,
também não será verdade” (STRECK, Lênio.
Dicionário de Hermenêutica. Letramento: Belo Horizonte, 2017, p. 292).
Mas o que se pode/deve fazer? Parece mesmo que “planejar” é a palavra de ordem. Dentre os diversos instrumentos de planejamento, podemos pensar no testamento. Existem, também, mecanismos dos próprios aplicativos para que a pessoa possa informar o que fazer após o seu falecimento (quem pode ter acesso, qual conteúdo pode ter acesso, etc). É o caso, por exemplo, do Gmail e do Facebook.
O tema é relevante
e ainda não parece haver consenso. A solução só virá a partir de pesquisas
sérias, para identificar soluções concretas e que não dependam de avalições
subjetivas. Por ora, muitas dúvidas, poucas conclusões.
Mas a proteção da dignidade humana e de um direito geral de liberdade, cuja autonomia privada é sua expressão em Direito Privado, desencadeia, no mínimo, uma conclusão: existe um “núcleo irredutível da autonomia pessoal” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2. ed., Coimbra: Almedina, 1998, p. 1156). Essa conclusão, encaminha outra: é preciso, neste momento, planejar, autonomamente, essa transmissão.
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