
A procuração em causa própria é um título translativo de propriedade?
A procuração em causa própria é um título translativo de propriedade?
Milena Barbosa Pereira Ferreira
Advogada
Para
responder a essa pergunta é necessário compreender os dois conceitos que a
compõem: procuração em causa própria e título translativo de propriedade.
O
primeiro é o negócio jurídico unilateral em que o outorgante (representado)
confere ao outorgado (representante) o poder de ele exercer a representação em
benefício próprio, mas em nome do outorgante.
Exemplificando:
Maria deseja transmitir a João um bem imóvel, mas, ao invés de comparecer
pessoalmente para assinatura da escritura pública, outorga procuração em causa
própria para que João assine, em seu favor, o instrumento.
Parece
um bom instrumento para planejamentos sucessórios. A procuração em causa
própria não pode ser revogada e não se extingue em razão da morte do
representante ou do representado. Assim, o representante pode transferir para
si os bens (o imóvel no caso do exemplo), devendo obedecer as formalidades legais,
conforme dispõe o art. 685 do Código Civil.
O
título translativo de propriedade, por sua vez, é o documento que serve de
instrumento para a transferência da propriedade de um bem para outra pessoa. No
caso do exemplo apresentado, o título translativo de propriedade será a
escritura pública a ser lavrada.
Considerando
os conceitos apresentados, no exemplo acima, pode-se dizer que após outorga da
procuração João será proprietário do imóvel? Não. A 4ª Turma do Superior
Tribunal de justiça decidiu sobre essa questão no recente julgamento do Recurso
Especial nº 1.345.170/RS:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. OMISSÃO E CONTRADIÇÃO.
INEXISTÊNCIA. PROCURAÇÃO EM CAUSA PRÓPRIA. NEGÓCIO JURÍDICO UNILATERAL. PODER
DE REPRESENTAÇÃO DO OUTORGADO, EM SEU PRÓPRIO INTERESSE. TRANSMISSÃO DE
DIREITOS REAIS OU PESSOAIS, EM SUBSTITUIÇÃO AOS NECESSÁRIOS SUPERVENIENTES
NEGÓCIOS OBRIGACIONAIS OU DISPOSITIVOS. INEXISTÊNCIA. ALIENAÇÃO DE IMÓVEIS COM USO DA PROCURAÇÃO. AFIRMAÇÃO DE ERRO,
DOLO, SIMULAÇÃO OU FRAUDE. INVIABILIDADE LÓGICA. CAUSA DE PEDIR APONTANDO QUE
OS NEGÓCIOS TRANSLATIVOS DE PROPRIEDADE FORAM EM CONLUIO ENTRE OS RÉUS, PARA
LESIONAR A PARTE AUTORA. PEDIDO DE NATUREZA CONDENATÓRIA. PRAZO PRESCRICIONAL.
RECONHECIMENTO DE INÉPCIA DA INICIAL, SEM OPORTUNIDADE DE EMENDA DESSA PEÇA.
IMPOSSIBILIDADE. 1. A procuração é negócio jurídico unilateral; o mandato,
contrato que é, apresenta-se como negócio jurídico geneticamente bilateral. De
um lado, há uma única declaração jurídico-negocial; de outro, duas declarações
jurídico-negociais que se conjugam por serem congruentes quanto aos meios e
convergentes quanto aos fins. Por conseguinte, muito embora o nome do outorgado
conste do instrumento de procuração, ele não é figurante, pois o negócio
jurídico é unilateral. 2. A procuração em causa própria (in rem suam) é negócio
jurídico unilateral que confere um poder de representação ao outorgado, que o
exerce em seu próprio interesse, por sua própria conta, mas em nome do
outorgante. Tal poder atuará como fator de eficácia de eventual negócio
jurídico de disposição que vier a ser celebrado. Contudo, até que isso ocorra,
o outorgante permanece sendo titular do direito (real ou pessoal) objeto da
procuração, já o outorgado apenas titular do poder de dispor desse direito, sem
constituir o instrumento, por si só, título translativo de propriedade. [...]
7. Recurso especial parcialmente provido (Resp 1.345.170/RS, 4ª Turma do STJ,
Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 04.05.2021).
Dentre
as razões de decidir, a Turma sustenta que, apesar da outorga da procuração em
causa própria, o outorgante segue sendo titular do direito. O outorgado apenas
tem direito de dispor desse direito, em seu próprio interesse, mas em nome
alheio. Ainda, destaca que a procuração em causa própria não tem o condão de, a
um só tempo, substituir negócios jurídicos obrigacionais e dispositivos.
No
exemplo de Maria e João, a procuração apenas outorga o poder de transferir o
bem para si próprio. A transferência da propriedade de bem imóvel exige o
título translativo (negócio jurídico de disposição), que deverá ser registrado,
nos termos do art. 1.245, do Código Civil.
Assim, pode-se referir que o entendimento atual do STJ melhor se coaduna ao ordenamento brasileiro vigente, considerando que o negócio jurídico de disposição tem como uma de suas funções dar maior segurança jurídica às partes envolvidas, bem como a pessoas alheias (terceiros) quanto ao negócio obrigacional celebrado.