A procuração em causa própria é um título translativo de propriedade?
2021
05/08

A procuração em causa própria é um título translativo de propriedade?

05/08/2021

A procuração em causa própria é um título translativo de propriedade?

Milena Barbosa Pereira Ferreira

Advogada


Para responder a essa pergunta é necessário compreender os dois conceitos que a compõem: procuração em causa própria e título translativo de propriedade.

O primeiro é o negócio jurídico unilateral em que o outorgante (representado) confere ao outorgado (representante) o poder de ele exercer a representação em benefício próprio, mas em nome do outorgante.

Exemplificando: Maria deseja transmitir a João um bem imóvel, mas, ao invés de comparecer pessoalmente para assinatura da escritura pública, outorga procuração em causa própria para que João assine, em seu favor, o instrumento.

Parece um bom instrumento para planejamentos sucessórios. A procuração em causa própria não pode ser revogada e não se extingue em razão da morte do representante ou do representado. Assim, o representante pode transferir para si os bens (o imóvel no caso do exemplo), devendo obedecer as formalidades legais, conforme dispõe o art. 685 do Código Civil.

O título translativo de propriedade, por sua vez, é o documento que serve de instrumento para a transferência da propriedade de um bem para outra pessoa. No caso do exemplo apresentado, o título translativo de propriedade será a escritura pública a ser lavrada.

Considerando os conceitos apresentados, no exemplo acima, pode-se dizer que após outorga da procuração João será proprietário do imóvel? Não. A 4ª Turma do Superior Tribunal de justiça decidiu sobre essa questão no recente julgamento do Recurso Especial nº 1.345.170/RS:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. OMISSÃO E CONTRADIÇÃO. INEXISTÊNCIA. PROCURAÇÃO EM CAUSA PRÓPRIA. NEGÓCIO JURÍDICO UNILATERAL. PODER DE REPRESENTAÇÃO DO OUTORGADO, EM SEU PRÓPRIO INTERESSE. TRANSMISSÃO DE DIREITOS REAIS OU PESSOAIS, EM SUBSTITUIÇÃO AOS NECESSÁRIOS SUPERVENIENTES NEGÓCIOS OBRIGACIONAIS OU DISPOSITIVOS. INEXISTÊNCIA. ALIENAÇÃO DE IMÓVEIS COM USO DA PROCURAÇÃO. AFIRMAÇÃO DE ERRO, DOLO, SIMULAÇÃO OU FRAUDE. INVIABILIDADE LÓGICA. CAUSA DE PEDIR APONTANDO QUE OS NEGÓCIOS TRANSLATIVOS DE PROPRIEDADE FORAM EM CONLUIO ENTRE OS RÉUS, PARA LESIONAR A PARTE AUTORA. PEDIDO DE NATUREZA CONDENATÓRIA. PRAZO PRESCRICIONAL. RECONHECIMENTO DE INÉPCIA DA INICIAL, SEM OPORTUNIDADE DE EMENDA DESSA PEÇA. IMPOSSIBILIDADE. 1. A procuração é negócio jurídico unilateral; o mandato, contrato que é, apresenta-se como negócio jurídico geneticamente bilateral. De um lado, há uma única declaração jurídico-negocial; de outro, duas declarações jurídico-negociais que se conjugam por serem congruentes quanto aos meios e convergentes quanto aos fins. Por conseguinte, muito embora o nome do outorgado conste do instrumento de procuração, ele não é figurante, pois o negócio jurídico é unilateral. 2. A procuração em causa própria (in rem suam) é negócio jurídico unilateral que confere um poder de representação ao outorgado, que o exerce em seu próprio interesse, por sua própria conta, mas em nome do outorgante. Tal poder atuará como fator de eficácia de eventual negócio jurídico de disposição que vier a ser celebrado. Contudo, até que isso ocorra, o outorgante permanece sendo titular do direito (real ou pessoal) objeto da procuração, já o outorgado apenas titular do poder de dispor desse direito, sem constituir o instrumento, por si só, título translativo de propriedade. [...] 7. Recurso especial parcialmente provido (Resp 1.345.170/RS, 4ª Turma do STJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 04.05.2021).

Dentre as razões de decidir, a Turma sustenta que, apesar da outorga da procuração em causa própria, o outorgante segue sendo titular do direito. O outorgado apenas tem direito de dispor desse direito, em seu próprio interesse, mas em nome alheio. Ainda, destaca que a procuração em causa própria não tem o condão de, a um só tempo, substituir negócios jurídicos obrigacionais e dispositivos.

No exemplo de Maria e João, a procuração apenas outorga o poder de transferir o bem para si próprio. A transferência da propriedade de bem imóvel exige o título translativo (negócio jurídico de disposição), que deverá ser registrado, nos termos do art. 1.245, do Código Civil.

Assim, pode-se referir que o entendimento atual do STJ melhor se coaduna ao ordenamento brasileiro vigente, considerando que o negócio jurídico de disposição tem como uma de suas funções dar maior segurança jurídica às partes envolvidas, bem como a pessoas alheias (terceiros) quanto ao negócio obrigacional celebrado. 


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